Com plantAção 1 e mais particularmente com a sua extensão c e r c a v i v a , Edson Atikum inscreve-se na corrente de artistas que trabalham o imperceptível e o vivo, ou seja, que colocam em cena o tempo e o seu alongamento, e do qual faz um campo possível da arte.
Introduzir a imburana no museu é uma forma de chamar a atenção para essa espécie ameaçada, e é engajar/comprometer o museu a fazer seu trabalho de conservação aplicado a um ser vivo. A prática não se enquadra na Land Art 2 , ainda que o ato de plantar uma árvore transforme a paisagem. Embora a árvore plantada in situ esteja fora do espaço museal propriamente dito, ela é incorporada ao espaço vegetal que circunda o museu. A plantação não se manifesta pela concessão de uma obra no jardim - não se trata de escultura -, mas pela adição de uma estaca de uma imburana de cambão, de mais de 1 metro de altura, cujo crescimento lento é, por essa razão, difícil de perceber. A árvore viva cresce ao longo do tempo e convida-nos a refletir sobre o material: a madeira, como organismo vivo e não como objeto morto, moldado de acordo com motivos ritualísticos, estéticos e sociais distintos.
A árvore plantada é uma obra discreta, está ali, sem nos interpelar, como é o caso de Fallen Forest (2006) de Henrik Hâkansson que consiste em derrubar no chão de uma galeria um punhado de uma floresta, cujas raízes estão contidas em vasos do outro lado da cerca que serve de suporte, nem se apresenta como uma instalação imersiva, como Forest Law (2014) de Ursula Biemann e Paulo Tavares, por exemplo, ou Purple (2017) , de John Akomfrah, este último uma instalação multi telas sobre mudanças climáticas. Ainda que, na presença de árvores, de seres vivos, realiza-se uma mudança em relação à produção de um objeto; o vivo é objetificado em seu encarceramento museológico para além de uma exposição temporária. E como nos lembra Alexandre Acosta, as relações com os mundos são diferenciadas e não podem ser reduzidas à visão colonialista do mundo, lembrando que quando um Guarani entra na mata e precisa cortar uma árvore, ele conversa com ela, pede licença, pois sabe que se trata de ser vivo, de uma pessoa, que é nosso parente e está acima de nós 3 .
O plantio de árvores tem sido operado no mundo da arte desde Joseph Beuys. Seu projeto 7000 Eichen (7000 Carvalhos) foi iniciado durante a Documenta 7 de Kassel. Com a ajuda de voluntários, ele plantou 7.000 carvalhos em cinco anos. Cada árvore é acompanhada por uma coluna de basalto. A última árvore foi plantada para a abertura da Documenta 8, em Kassel com a ajuda da Dia Foundation. O projeto foi retomado (perpetuado) de diversas formas em outros lugares: Baltimore, Nova York, recorrendo a um enunciado de Beuys que diz que qualquer um pode ser artista, reconhecendo assim a criatividade de cada plantador. Encontraremos esse mesmo reconhecimento democrático do gesto, na plantAção de Imburana, de Edson Atikum.
Fabrice Hyber iniciou suas plantações há mais de trinta anos, em 1992, em um terreno que comprou com suas primeiras economias no final da década de 1980 em Vendée. Esta compra foi motivada para proteger a fazenda dos seus pais, e para que esta não fosse rodeada pela agricultura industrial que invadia a região e para a qual o Estado francês favorecia a consolidação, ou seja, o desenraizamento de todos os arbustos que separavam as parcelas para criar grandes áreas. Alguns anos depois, teve a ideia de plantar ali uma floresta, espalhadas 300 mil sementes para misturar as espécies.. Aqui, tal como no projeto Tree Mountain de Agnes Denes (1982-96) 4, a reivindicação ecológica era prioritária. Para esta instalação a céu aberto foi necessário preparar o terreno através da construção de uma cascalheira com resíduos de uma mina que destruiu os recursos do solo. O processo de bio-restauração permitiu restaurar a terra em harmonia com a natureza, criando uma floresta virgem. A plantação de árvores protege a terra da erosão, melhora a produção de oxigénio e fornece habitat para a flora e a fauna. Cada árvore plantada recebeu o nome do doador e será repassada aos seus descendentes 5 . Tree Mountain é um trabalho colaborativo, desde seu intrincado paisagismo e silvicultura até o financiamento e acordos contratuais em torno do estranho e inédito uso da terra ao longo de quatro séculos. O paradoxo do trabalho reside no fato de a (chamada) floresta virgem ser plantada em espiral ascendente para melhor cobrir a superfície da montanha, com o objetivo de regenerar um ecossistema.
Estas obras de grande envergadura, no que diz respeito à desflorestação e às consequências das alterações climáticas, são como proposições que desejam, pela sua existência, alertar-nos para a necessidade e urgência da preservação dos recursos naturais. São exemplares e privilegiam a floresta em geral ou determinadas espécies, que poderíamos qualificá-los como uma intervenção global enquanto o gesto menor de Edson Atikum foca em uma espécie específica: a Imburana de Cambão, espécie pertencente ao bioma da caatinga. Ele nos informa, através de um gesto simples, partilhável por qualquer pessoa, que assume a forma de uma performance, da exigência de sua preservação. Neste caso o objectivo não é o global mas sim a ênfase no local, ou seja, o que está “à mão”, o que nos rodeia e qualifica o território que habitamos. Trata-se de agir o mais próximo possível para não replicar respostas universalizantes aos contextos locais.
O ato de plantar uma árvore invoca a ideia de sobrevivência, como o que permitirá aos humanos se alimentarem, a partir do momento em que a colheita deixa de ser aleatória e passa a depender da produção do que foi semeado. Gesto ancestral da humanidade de plantar hortaliças e frutas, porém, a plantação se manifesta de forma mais violenta e industrial no colonialismo, marco da escravidão 6 . Passamos então de uma prática sustentável para uma cultura intensiva, em que a plantação é ao mesmo tempo uma fábrica (de alimentos) e um campo disciplinar. A plantação sinaliza o deslocamento das plantas e das pessoas segundo uma lógica produtivista que hoje se afirma sobretudo sob a forma de greenwashing 7 e que muitas vezes prolonga a transformação da floresta num espaço de monocultura. A floresta como habitat desaparece, portanto, sendo substituída pela floresta como recurso econômico que convém ser gerido de forma eficiente e lucrativa 8. Plantar não é um gesto neutro, é carregado de um grande número de histórias, e não apenas indica um futuro, mas acena para o passado desta atividade ao longo dos tempos. Nesse caso, o plantio é indissociável da extração e da extinção, tanto quanto da resistência e da recuperação 9 , sem falar na regeneração.
Criar c e r c a v i v a é reconectar-se à uma prática agrícola. A cerca viva serve principalmente para demarcar terrenos com bordadura vegetal, mas também para cortar o vento, é também garantia de biodiversidade, muitas vezes é constituída por diversas espécies autóctones. Mas ela favorece a projeção num espaço imaginário pois, a particularidade desta cerca viva é a sua topografia, ela não delimita um terreno, ela é uma linha (livre) que vai de um local de plantação a outro, ela não define um território mas sim um percurso, um caminho que vai daqui até ali, tanto no espaço como no tempo. No espaço é um traço imaginário que conecta cada Imburana de cambão, no tempo inscreve a retomada de um vivente sobre todos os desenraizados. Seu desenho não é uma linha reta, mas se constitui por um conjunto de curvas e dobras. É então visto como um gesto menor face ao interminável abate destas árvores por grandes projetos de desenvolvimento industrial ou, muito mais perniciosos, da indústria agro-alimentar, ou menos espetacular, mas ainda assim intenso, da produção de carvão vegetal que prolonga a erradicação. No entanto, não se trata de reparação, Edson Atikum não faz parte deste segmento; através de um gesto menor que visa aumentar a nossa consciência sobre o desmatamento e as mudanças climáticas, ele instaura às margens do museu, um ato de perpetuação de uma espécie em perigo de extinção e, com isso, sinaliza a importância do uso diferenciado da caatinga pelos seus povos: Usamos a Caatinga de diversas maneiras. Além de nos fornecer alimentos, é a nossa farmácia e também é onde obtemos os insumos para a construção de nossas casas, o que mostra o quanto ela é importante para nós. Também mantemos ali o nosso sistema agrícola que promove a biodiversidade. O cerne da conservação por parte dos povos indígenas é que não há necessidade de extrair recursos em grande escala comercial 10 .
c e r c a v i v a tem a particularidade de oferecer através de suas voltas e reviravoltas não um mapa que traça um estado do território, mas uma deambulação por um território que não respeita fronteiras e separações de propriedades em favor do movimento, de uma passagem de uma Imburana para outra, para além dos acidentes geológicos. c e r c a v i v a é uma incisão imaginária caprichosa na paisagem da caatinga, sujeita a outros avanços, que farão deste percurso uma estrutura arbórea em constante aumento.
Plantar uma árvore não é jardinagem, na verdade o jardim é uma das tentativas do homem de impor à natureza os seus próprios princípios de ordem, utilidade e beleza 11 , mas pode tornar-se num ato de resistência não só em face às alterações climáticas mas também diante da história e seus agentes de escrita da história do colonizador. Na maioria dos museus encontramos objetos feitos por artistas e artesãos que utilizam a imburana de cambão pelas suas qualidades específicas de flexibilidade e resistência. Árvores mortas transformadas manualmente em objetos estéticos ou utensílios que são preservados nesta instituição. O museu se encarrega dos objetos, mas raramente leva em conta quem os produziu e muito menos a matéria viva por eles trabalhada. Esta mutação do estatuto da árvore de acordo com as diferentes proposições que o projeto tem desencadeado, faz com que, segundo Abiniel João Nascimento: A Imburana passa a ser uma entidade política, um dispositivo artístico que pronuncia um vocabulário proveniente do território Atikum, povo indígena do qual Edson Barrus é corpo 12 .
Plantar uma Imburana de Cambão no pátio ou jardim de um museu é mudar prioridades, coloca o museu frente a cuidados diferenciados, inscreve a vingança dos vivos, dos excluídos, seja eles uma árvore ou um povo, dizimados durante colonização ou depois, segundo os ritos de uma cultura extrativista, da qual o museu no seu silêncio manifesta a ausência, para não dizer erradicação. Com efeito, o museu, enquanto túmulo, recolhe artefatos listados e catalogados, restaurados se necessário e preservados 13 . O que diz respeito ao museu é a matéria inerte que deve ser preservada da melhor forma possível, através de coleções de objetos estéticos, científicos e técnicos com vista à sua apresentação ao público e que constituem património 14 a fim de contar uma história de poder mais ou menos afirmado. Alan Sonfist tentou opor-se a esta dimensão exclusivamente conservadora dos museus que olham para objetos mortos, propondo que estes se tornassem depositários de um conjunto de sementes. Enviou assim pacotes de sementes idênticas a 100 museus, que são cápsulas do tempo em miniatura portadoras de futuro. Ele explica a sua ação numa carta dirigida aos diretores dos museus e entre eles, ao diretor da Galeria Nacional da Finlândia:
- À medida que nos aproximamos do final do século, as condições ambientais estão mudando rapidamente. O planeta inteiro está aquecendo e a água e a terra estão sendo alteradas pela poluição industrial. Não podemos separar a arte da natureza.
Tradicionalmente, a arte celebra atos de importância humana, como heróis de guerra, como cavalos de bronze. Agora que percebemos nossa interdependência com o meio ambiente, devemos prestar homenagem ao nosso patrimônio natural.
Desde a década de 1960, venho criando ‘Time Landscapes’15, florestas em nossos centros urbanos para visualizar um melhor entendimento de nossa história natural. Agora que as condições ambientais em todo o mundo estão mudando rapidamente, as florestas mundiais estão se extinguindo. A crescente poluição industrial está destruindo árvores básicas em todo o mundo, como o abeto na Finlândia e o bordo açucareiro nos Estados Unidos. Elas desaparecerão no próximo século.
Como obra de arte, confio ao seu museu o ARC of Finland, que contém sementes de árvores ameaçadas de extinção da região norte da Europa. Selecionamos 100 museus com esta confiança / para esta tarefa. O ARC pode ser exibido com a instrução anexada. Eventualmente, os ARCs serão devolvidos ao museu original quando a floresta for destruída. As sementes serão então plantadas em um invólucro especial para protegê-las para as gerações futuras 16.
Esta introdução do vivo no espaço museológico difere da proposição de Giovanni Anselmo com Senso titolo (Struttura che mangia) [Estrutura que come] de 1968, que consiste em dois maciços blocos de granito, fio de cobre e uma alface. A montagem desmorona quando a salada murcha irreparavelmente, indicando que a obra existe na vida “real”. Pede-se ao museu que cuide da deterioração da alface, colocando uma nova sempre que murchar. O museu mantém assim a peça, mantendo-a “viva” através de cada nova alface. A obra é, portanto, atualizada ao longo da exposição.
Ao contrário da árvore fossilizada de Guiseppe Penone, que inscreve um momento passado, a árvore de Edson Atikum é porta o futuro pela própria presença. Não é uma representação, mas a presença da árvore. Não é um artefato, é um ser vivo. A árvore de Guiseppe Penone, seja a árvore das vogais (1999), ou a árvore imortal (2021), é fundida em bronze, e muda de cor com o tempo nos jardins onde está instalada, porém é apenas uma mudança de pátina e não uma transformação da árvore que permanece como foi feita pelo artista, como faz Franz Krajcberg com suas árvores carbonizadas denunciando os incêndios florestais, agente do desmatamento no Paraná e na Amazônia. O gesto do artista se impõe pela escolha do material, pela localização da escultura no jardim, enquanto Edson Atikum apaga o seu gesto, (o plantio em determinado local) em favor do crescimento da árvore, para o qual ele delega a manutenção e, portanto, a responsabilidade ao museu, perpetuando assim a sua tarefa: que é preservar. Esse apagamento do gesto do artista lembra o que Patricia Johanson conseguiu fazer com o projeto no Fair Park Lagoon, com Leonhardt Lagoon (1985), em que um ambiente recupera seu ecossistema graças ao saneamento da água, enquanto a flora e a fauna tomam gradativamente seu lugar novamente, sem mencionar o fato de que se trata de obra de um artista. Seu trabalho é sobre reparos e pertence à Land Art no modo Reclamation Art.
O jardim e a plantação são fonte de inspiração e criação de trabalho para muitos artistas contemporâneos que enfatizam o crescimento e a especificidade de um jardim criado para uma exposição como Grasslands Repair da artista australiana Linda Tegg, para a Bienal de Veneza de 2008, ou Agnes Denes que com Wheatfield A Confrontation (1982) transformou a terra do que hoje é Battery Park City em Nova York, em um vasto campo de trigo que ela plantou e colheu.
Plantar uma árvore no museu significa estabelecer um outro regime de cuidados que já não se dirige a um ou mais objetos definidos, mas a um ser vivo, em constante transformação. Isso muda a relação com a temporalidade ao enfatizar a importância do presente e não apenas a preservação de um passado. Mudança fundamental que permite (re)introduzir no museu o que foi excluído segundo sistemas de leitura que dedicam um culto incessante a qualquer forma de extrativismo, sejam eles minerais, plantas ou objetos de arte. Como observa Françoise Verges, que põe a questão de como concretizar outras formas e práticas de representação e narração nesta instituição que é o museu? Inverter prioridades enfatizando o que é vivo, é o caminho proposto por Edson Atikum, na medida em que inscreve no espaço institucional do museu, o gesto menor de um artista originário, que geralmente não tem lugar, fora das formas ampliadas e contemporâneas da retomada 17 . A presença de um artista Atikum no espaço museológico pernambucano está em desacordo com o conteúdo de um desses museus 18 que nos mostra os instrumentos da classe dominante local e representa estereotipadamente as populações indígenas; como se a vida não existisse antes da chegada do colono e dos seus modos de fazer e ver ou estar no mundo. Ao aparecer no museu, a Imburana de Cambão relembra essa outra história, a da desqualificação, da aniquilação dos povos e da formatação das paisagens segundo padrões agrícolas produtivistas.
Não é tanto o retorno ao material natural que modifica o estatuto da obra, na medida em que muitas vezes a fabricação do objeto predetermina a escolha que pode parecer "ecologicamente neutro" em se tratando, no caso, de produtos naturais, como a palha, o mel, as ervas... A obra nasce de uma preocupação ecológica, mas não modifica a relação com o objeto porque é constituído por materiais ditos naturais para produzir uma forma, uma escultura que pode evoluir como nas propostas de artistas ditos Reclamation/, ou de artistas que se propõem, durante uma exposição, criar um jardim, como fez Kristina Buch com The Lover (2012), ou Song Dong com Doing Nothing Garden (2010-2012), como parte da Documenta 13. Essas obras site-specific centram-se na produção de um jardim como prática artística e escultórica em que a duração é parte integrante da obra, como também acontece em Lohana Montelo, com Escultura Viva em Paisagem Especifica ( 2020,) que se preocupa com a criação de sistemas agroflorestais a partir de sementes num local específico 19 . Podemos perceber claramente como a proposta c e r c a v i v a difere destas práticas, na medida em que cada plantação apela à nossa imaginação para se constituir como uma cerca viva. A linha imaginária é elaborada não segundo uma cartografia fixa, mas ao longo do ar e do tempo. Ela se inscreve então, como um comum a ser considerado e se opõe à própria natureza da cerca, ou seja, aquilo que encerra (cercamento), ao restabelecer a partilha, o comum pelo contorno de uma fronteira aberta e porosa. Neste momento passamos do cultivo em campo aberto para a instauração, através de cercas, de propriedade privada. Confisco de terras e instauração do fim do direito de uso comum 20 . c e r c a v i v a, através do seu traçado que ultrapassa os limites físicos do terreno, regressa ao tempo em que o uso do terreno não era definido pela vedação. Poderíamos dizer que: Contrariamente ao gesto de partilha e de apropriação e a lógica de cercamento típica do Nomos europeu, a capacidade de viver não equivale ao direito de dispor das coisas sem reservas 21 . A cerca viva da Imburana abre seu rastro oferecendo-nos mentalmente a possibilidade de compreender a porosidade 22 como agente ativo de disseminação; as estacas são reproduzidas assexuadamente 23 e como observa Edson Atikum: Plantar estacas é uma técnica ancestral de povos originários de produzir parentesco, por um ato de regeneração, e não por um ato de reprodução sexuada 24.
As imburanas de cambão acolhem, pela sua conformação, diferentes espécies que ali vivem e povoam a paisagem. A porosidade da cerca remete à porosidade da árvore como ecossistema. Em outras palavras, a árvore é um criadouro, um nicho ou refúgio para espécies que vêm, elas próprias, aglomerar-se no entorno. A proposta de Edson Atikum com c e r c a v i v a, amplia espacialmente essa enxameação; ela pode ser entendida como um ativismo que visa produzir um imaginário de transição, para usar os termos de Arturo Escobar 25 . A cerca viva cria uma malha 26 entre espaços distintos ligados por um elemento comum (a imburana) cujo crescimento deve ser assegurado/preservado, ou seja, cuidado, tanto quanto, constitui redes de relações entre indivíduos, comunidades, etc. c e r c a v i v a inscreve no terreno um conjunto de espaços de resistência face ao desmatamento em curso. E não é insignificante que as diversas mudas sejam plantadas em áreas agrícolas onde geralmente há pouca consideração pelas preocupações ecológicas.
O conjunto de estacas traça não apenas uma linha imaginária, mas delineia um território de conservação que leva a uma transformação do hábito a partir do qual qualquer estratégia de conservação deve ser desenvolvida com base nos conhecimentos e práticas culturais das comunidades 27 . Este território faz parte do bioma caatinga e se estende além dos limites cadastrais das áreas urbanas. A linha Imburana transcende entidades territoriais ao oferecer uma uma verdadeira viagem imaginária pelas paisagens. O território é entendido como algo que vai além das propriedades, em benefício de uma apropriação efetiva por meio de práticas socioculturais. É este espaço estabelecido pelas relações que o constituem, sejam elas quais forem, e neste sentido é uma nova grafia da terra 28 . Essa transformação é induzida pela ação de plantar, entendido como uma performance realizada por Edson Atikum, e ainda mais, inaugurada com o Projeto Imburana 29 , em 2015. Esse projeto surge com o objetivo de salvar uma Imburana de Cambão que seria derrubada, durante a venda do terreno onde cresceu sua mãe, a negociação permitiu o não corte da árvore e a criação de um sítio como zona de proteção ecológica. O Projeto Imburana corresponde ao equivalente a dois campos de futebol da Caatinga. Isto é insignificante face à perda total de madeira virgem, mas importa como atitude individual de ecologia menor. Ou seja, a ação de cada pessoa. O que, numa minoria, podemos instigar em todas as atitudes possíveis para bloquear a exploração ilegal e destrutiva das florestas 30.
Este gesto inaugural desencadeou uma série de projetos que visam tornar esta árvore uma espécie patrimonial, dos quais plantAção foi um dos primeiros gestos implementados por Edson Atikum, e é até a data, o último evento realizado através da c e r c a v i v a . A proteção da árvore sublinha a importância do fazer como forma de denúncia inscrevendo a resistência face à história de dominação entendida como relação de raça ou classe. A recuperação da árvore sinaliza, para seus parentes, um processo de reterritorialização da história por seus agentes excluídos. Trazer a árvore viva para o museu significa mudar e reinventar a história. Lembremos que a Imburana de cambão não é considerada uma madeira de lei; não tem valor no mercado madeireiro, por isso, ao contrário das plantas valorizadas que tornam-se “cultiváveis”, as espécies não comerciais, competem com elas e são reduzidas ao estatuto de “ervas daninhas”; e os insetos que delas se alimentam tornam-se “nocivos”. Da mesma forma, as árvores valorizadas tornam-se “madeira”, enquanto as espécies que competem com elas são reduzidas ao estatuto de arbustos ou “vegetação rasteira 31 ” .
Ao reintroduzir a imburana em matéria viva, a madeira valorizada pelo fazer artístico volta, à sua condição natural de planta desvalorizada. Esta inversão de valores está no cerne do sistema imaginado por Edson Atikum que dá assim nova dimensão às palavras e gestos de um artista indígena contemporâneo. A plantAção no museu Kapinawá ganhou outra dimensão, pois o plantio fez parte da criação de um espaço vegetal para a comunidade, e principalmente, esse espaço sendo dedicado ao acervo de objetos arqueológicos pré-coloniais, “museu a céu aberto”, e consiste de uma compreensão Kapinawá dos sítios como acervo museológico do patrimônio arqueológico pré-colonial. O plantio da árvore neste memorial e espaço de convivência sublinha/revisita a comunhão de vínculos entre Kapinawá e Atikum-Umã 32 . A futura árvore poderá fornecer sombra para encontros e suporte à sobrevivência de outras espécies.
1 Sobre plantAcões ver o texto de Edson Atikum Ação de Plantar, 2020 no site do Projeto Imburana https://projetoimburana.art.br/pt/noticias/plantacoes
2 Gilles Tiberghien, Land Art: No início da década de 1960, uma tendência na arte americana, mas também européia, colocava cada vez mais ênfase na utilização de materiais naturais, terra, água ou ar, que manifestam o processo no trabalho e ao mesmo tempo, implicam uma nova concepção de duração na arte. Encyclopædia Universalis on-line https://www.universalis.fr/encyclopedie/land-art/
3 Alexandre Acosta da Aldeia Cantagalo, Rio Grande do Sul em: Povos Indígenas: aqueles que devem viver Manifesto contra os decretos de extermínio , p. 17, Conselho Indigenista Missionário, 2012, Brasília
4 O título original da peça é Tree Mountain — A Living Time Capsule — 11,000 Trees, 11,000 People, 400 Years . Para ver a peça: https://www.youtube.com/watch?v=nmVFGwNeWcc
5 http://www.agnesdenesstudio.com/works5.html
5 http://www.agnesdenesstudio.com/works5.html
6 Sobre a dinâmica da escravidão na plantação ver Achille Mbembé: La communauté terrestre, p. 47-57, La Découverte, Paris 2023
7 Sobre os perigos do greenwasing, ver Quelque chose de grave se passe dans le ciel, Wu Ming1, na manhã de segunda-feira, 444 Paris, 24 de setembro de 2024
8 L’œil de l’État, James C. Scott p. 55, La découverte, Paris 2019
9 Ver Keeve, “Fugitive Seeds”. Carney, “Subsistence in the Plantationocene”; Carney e Rosomoff, “In the Shadow of Slavery”; Carney, Judith A. 2021. “Subsistence in the Plantationocene: Dooryard Gardens, Agrobiodiversity, and the Subaltern Economies of Slavery.” Journal of Peasant Studies 48(5): 1075–1099. https://doi.org/10.1080/03066150.2020.1725488
10 Edson Barrus Atikum: texto do artista para a exposição Imburaninha, catálogo, p.16, Ygrec Aubervilliers, 2022.
11James Scott : L’œil de l’état, op cit
12 Abiniel João Nascimento, no catálogo Imburaninha, p.23, op cit
13 Françoise Verges: O museu, pela sua origem patriarcal, colonial e imperialista, é parte integrante da modernidade europeia e da construção do Estado e das suas instituições. É uma instituição central deste sistema.
14 patrimônio é todo bem material e imaterial, de propriedade pública ou privada, que tenha interesse histórico, artístico, arqueológico, estético, científico ou técnico.
15 Os monumentos públicos têm tradicionalmente celebrado acontecimentos da história humana – atos de heroísmo importantes para a comunidade humana. Cada vez mais, à medida que compreendemos a nossa dependência da natureza, o conceito de comunidade expande-se para incluir elementos não humanos. Os monumentos cívicos, então, devem honrar e celebrar a vida e os atos da comunidade total, o ecossistema humano, incluindo os fenómenos naturais. Especialmente dentro da cidade, os monumentos públicos devem recapturar e revitalizar a história do ambiente natural daquele local. Assim como nos monumentos de guerra, aquele registro de vida e morte de soldados, a vida e a morte de fenômenos naturais como rios, nascentes e afloramentos naturais precisam ser lembradas.
Em uma palestra no Metropolitan Museum of Art NY 1969; em entrevista ele fala sobre Time Landscape: a floresta reconstruída foi uma forma de voltar à floresta da minha infância em Nova York como ela era inicialmente em Greenwich Village. Transplantei espécies de árvores vivas, como faia, carvalho e bordo, e mais de 200 espécies de plantas diferentes nativas de Nova York, selecionadas de um período de contato pré-colonial em Nova York. Elas ainda estão lá no local. Além de vivenciar as árvores indígenas da cidade de Nova York, o Time Landscape me permitiu vivenciar e interagir com raposas, veados, cobras, águias e isso fez parte da minha experiência. (entrevista com Alan Sonfist John K Grande para o Museu Verde 2007: http://www.greenmuseum.org/generic_content.php?ct_id=284 )
16 Carta de 1992 de Alan Sonfist ao diretor do Museu ARC da Finlândia, citada e traduzida por Edson Atikum em https://projetoimburana.art.br/pt/noticias/plantacoes
17 Muitos povos, agora reorganizados, recuperam as suas terras originais roubadas pelos invasores. Este processo, conhecido como retomada, ocorreu em múltiplas dimensões: seja pela retomada dos rituais sagrados, pela salvaguarda das línguas indígenas ou pelo confronto baseado no uso de ornamentos indígenas, antes proibidos. Abiniel João Nascimento: Urtiga nos pés, em Imburaninha, p.22, Le Centre d'art Ygrec -Enspac, Paris 2022; Além disso, há um claro interesse pelos artistas indígenas, por exemplo, a Bienal de Veneza de 2024.
18 Os diferentes museus em que a Imburana foi plantada por iniciativa de Edson Atikum vão desde o Jardim Botânico de Sorocaba, durante a Trienal de Arte Contemporânea Entre pós -verdades e acontecimentos (2017), até os seguintes jardins de museus: Museu da Abolição ( 2018), Museu Murillo La Greca (2019), Museu da Cidade de Recife (2021), Oficina Francisco Brennand em Recife (2023), Museu du Sertão de Petrolina (2022), e em 2024, no Museu Kapinawá (Casa de Memória Alexandre Diniz ) na aldeia Malhador Kapinawá, em Buíque; no Museu Coripós em Santa Maria da Boa Vista; no Museu de Pai Chico no povoado de Caboclo, Afrânio; no Museu Gonzagão no Parque Aza Branca em Exu e no Museu de Cangaço em Serra Talhada . Além disso, foram plantadas 126 mudas na cerca do sítio do Projeto Imburana, no Logrador, pela primeira vez em 2022.
19 Sobre esta artista e o projeto Composteiras do qual é uma das participantes ver https://select.art.br/artistas-da-terra/
20 Sobre este ponto podemos consultar Isabelle Stengers: Em tempos de catástrofes Resistir à barbárie que se aproxima: Estas terras foram “ cercadas ”, isto é, apropriadas exclusivamente pelos seus proprietários legais, e isto com consequências trágicas porque o uso dos bens comuns eram essenciais para a vida das comunidades camponesas . P.99, Editions La découverte, Paris, 2009.
21 Achille Mbembé : La communauté terrestre p 89, op cit
22 Haveria muito a desenvolver sobre a ideia de porosidade que podemos observar no trabalho com Cão Mulato (1998), que propõe o cruzamento de seis raças de cães para obter ao final a quarta geração um genoma matriz Cão Mulato.
23 A reprodução vegetativa refere-se a propagação por estacas e não por sementes.
24 Edson Barrus Atikum: Renque https://projetoimburana.art.br/noticias/renque;
25 Arturo Escobar: Sentir-penser avec la terre Une écologie au-delà de l’Occident, Le Seuil, Paris, 2018, p. 24.
26 O QRcode implantado próximo à estaca destaca essa malha ao indicar os demais espaços onde a imburana foi plantada
27 Arturo Escobar: Sentir-penser avec la terre: Une écologie au-delà de l’Occident, Le seuil, Paris,2018, p. 80.
28 Tomando um conceito de Porto Gonzalves Carlos: Da geografía às geografías. Um mundo em busca de novas territorialidades 2002. https://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/gt/20101018013328/11porto.pdf
29 https://projetoimburana.art.br/
29 https://projetoimburana.art.br/
30 Edson Barrus Atikum em Imburaninha, p.7, op cit.
31 L’oeil de l’État James C. Scott, op cit.
32 Juliana Freitas Ferreira Lima: Dissertação Códigos em Retomada – Grafismos Kapinawá encontros e (r)existências no Vale do Catimbau, Pós-Gradução, p.109, UFPE, Recife, 2019.
yann beauvais, Recife, outubro de 2024.
Tradução Francês/Português: Kelly Saura
Revisão de tradução: Edson Atkum
https://yannbeauvais.com/?p=1950